Um dia na pesca com "aparelho"

            Na costa norte da ilha Terceira, fica situada a freguesia dos Biscoitos, onde o seu cais piscatório já desafia as intempéries sazonais, ao longo de incontáveis décadas. No entanto, aquilo que o “terrível” e malfadado Oceano Atlântico Norte, não conseguiu no decurso destes anos, foi finalmente atingido pelas “excelentes e correctíssimas” medidas implementadas pelos diversos governos regionais ou centrais, que muito se esmeraram para liquidar definitivamente a pesca artesanal praticada naquele porto e noutros similares. Umas vezes alegando a “preocupante” e “calamitosa” pesca “desregrada” de “meia dúzia” de gorazes ou espécies afins, laboriosamente apanhados com os meios mais rudimentares de captura dos fins do século XX (alguns ainda com resquícios de fainas do século XIX), mas descurando “displicentemente” a presença de arrastões e traineiras, cujas passagens nas águas costeiras tudo levam e destroem, outras exibindo uma duvidosa apetência desmedida por taxas e impostos, sobre uma das mais arriscadas e desgastantes actividades laborais, conseguiram, FINALMENTE!!!..., retirar daquela zona a Lota e a maior parte dos apoios que serviam o norte da Ilha.

            Feito este breve desabafo, que traduz uma exclusiva opinião pessoal, vou tentar homenagear todos aqueles que ao longo dos tempos se bateram pelo progresso e manutenção do que era considerado um dos ex-libris da freguesia, o seu PORTO DE PESCA, procurando relatar uma “pescaria com aparelho”, realizada  nas águas daquela costa.

            A acção decorre num dia de Agosto, de um ano qualquer, em que o tempo se apresenta ligeiramente sombrio, a bordo da lancha “Sandra Andreia”, propriedade do meu amicíssimo Fernando Rosa, mais conhecido pelo “Fernando do Porto”. É uma das figuras ímpares daquele porto, que junto com outros como o “Romeu”, o “Ilídio”, o “Manuel Fernando, Baixa Larga”, o “António Cabaço”, o “Henrique Gaspar”, o “Morais”, etc., pugnaram para que nunca faltasse naquele cais a chegada de uma embarcação, que sempre trouxesse um peixe acabado de pescar, nas águas cujas características contribuem para a melhor qualidade até hoje já encontrada.

               Para um aproveitamento total das condições climatéricas e horários mais favoráveis, impõe-se que a partida se concretize pela manhã. Assim, já no dia anterior o mestre da lancha, o meu amigo Romeu, preparara todas as “panas” com as “gorazeiras1 de anzóis já iscados e acamados, de modo a evitar que se enricem, para deixar na câmara frigorífica, bem como verificara o combustível e efectuara as restantes operações de manutenção.

            Pelas 07H00, infalivelmente parada à porta da minha casa na Canada da Salga, lá se encontra a Mitsubichi L200 4X4, do meu amigo Fernando que pacientemente, aguarda que me levante ainda estremunhado, com alguns sabores desagradáveis na boca, resultado da noite anterior, em que não foi propriamente a comida o que mais abundantemente se ingeriu. Percorridos os "longínquos" 200 metros que distam da minha residência ao “varadouro”2 e após as saudações matinais ao Luís Carlos, “Pica”, e ao Romeu, restantes membros da “campanha”3, iniciou-se a rotineira tarefa de abastecer a embarcação, enquanto este último “enseba” os calços de madeira que servem para fazer deslizar a lancha até ao mar. Já com tudo a bordo, incluindo os sacos com o farnel, as bebidas, a “roupa de água”4 e a inevitável colocação da "jaja"5, preparámo-nos para “arriar"6, indo o “Fernando” para o “cabeço”7, enquanto o Pica equilibra a lancha, o Romeu “faz a madeira”8 com os paus que eu apanho do varadouro e levo de forma a proporcionar o deslizar contínuo até às ondas.

            Terminada esta fase inicial e connosco a bordo, partimos rumo ao pesqueiro escolhido pelo “mestre” e pelo “patrão”. Com todo este labor, são cerca de 7H30 da manhã e o Sol mostra-se ainda tímido e envergonhado, ocultando-se teimosamente atrás de algumas nuvens no horizonte, enquanto a embarcação corta o lençol azul escuro que se estende à nossa frente, com a proa apontada firmemente para o norte. O Romeu e o Fernando, atentamente observam a costa da ilha que rapidamente parece afastar-se, procurando pelas "marcas"9 secreta e religiosamente guardadas na memória e que por triangulação permitem a exacta localização das "baixas",  enquanto o primeiro segura a roda do leme. Nós, eu e o "Pica", cabeceamos ritmicamente, embalados pelo suave ondular das águas que nesse dia se apresentam calmas e aproveitamos para passar por uma ligeira soneca que retempera da noite mal dormida.

            Pelas 09H00, o troar do motor reduz-se bruscamente passando para um ronronar cadenciado, a proa desce enterrando-se na água e reduzindo drasticamente a velocidade da lancha. É este o sinal para que tudo ganhe vida a bordo e cada um ocupe instintivamente as suas posições já rotineiramente atribuídas. O bidão  com a "cabeceira"10 é arrastado para junto da amurada, enquanto se prepara a “poita”11, bóias e as “bandeirolas12 para serem lançadas “borda fora”.

            O Romeu vai observando as marés e posiciona-nos com precisão no início do contorno da baixa da “Pedra do Altar”, trocando simultaneamente opiniões com o Fernando sobre a melhor oportunidade para se iniciar a faina.

            Entretanto, cá atrás já está tudo preparado para o lançamento da bandeirola e das bóias, devidamente atadas à extremidade da longa corda. Ao sinal do Romeu, o conjunto é atirado pela “borda”, ficando a assinalar o início de todo o aparelho. Deixa-se correr uma apreciável quantidade de corda (sensivelmente equivalente à profundidade do local, mais algumas “braças” para compensar as variações das marés e ondulação) e prende-se a poita à corda, para conduzir a “retenida”13 ao fundo. O Romeu e o Fernando trocam de lugar, nos comandos da lancha, começando, então, a actividade frenética que o lançamento do aparelho exige. Assim, o Romeu toma a sua posição na popa, orientando a saída da retenida enquanto esta vai “escorrendo” pelas mãos do “Pica”. Quando surge a primeira "guia"14, é introduzido por um de nós, imediatamente, uma das muitas bóias pequenas que vão permitir manter tensa a gorazeira com os anzóis. De imediato, o Romeu ata o começo de uma gorazeira que vai estendendo cautelosamente para evitar qualquer enriço que prejudique a colocação do aparelho, finalizando com o atar de uma pedra na sua extremidade, para manter no fundo a verticalidade da linha.

            Com uma exactidão cronométrica, quando esta operação termina, já se encontra preparada e na sua mão, uma nova guia, iniciando o Romeu novo processo de lançamento. Isto repete-se tantas vezes quantas as correspondentes ao número de guias existentes na retenida.

            Lançada a última gorazeira, procede-se à operação contrária à inicial, ou seja, após correr uma apreciável quantidade de corda, atira-se para o fundo a segunda poita, que arrastará consigo novas dezenas de metros de corda, na extremidade da qual se atarão as restantes bóias e a outra bandeirola.  Tudo isto se desenrola com a lancha a navegar a uma velocidade muitíssimo reduzida, de modo a permitir a sequência dos gestos, sem atropelos, nem acidentes, correndo o tempo, este sim, com uma rapidez incrível. Esta primeira fase, conclui-se cerca de duas horas mais tarde, pelas 11H00. É, chegada a ocasião de se "meter a bucha" religiosamente guardada na cabine da lancha. Cada um apanha o seu saco comendo e trocando com os colegas, aquilo que as esposas lá puseram para acalmar o "bichinho" que por estes tempos já vai dando sinal.

            Com a embarcação em marcha moderada, inverte-se o rumo com destino ao sítio onde deverá permanecer a primeira bandeirola, que entretanto, devido à distância percorrida e à curvatura da terra, já deixou de se ver.

            Avistada a bandeirola, o Fernando agarra na "graveta"15 e aguarda a aproximação. Com o gancho, apanha o troço da corda entre a bandeirola e a bóia, içando o conjunto para o interior, enquanto o "Pica" ocupa o seu lugar, sentado na amurada, voltado para o "cabeço"16, que entretanto foi accionado pela correia colocada pelo Romeu.  Dando duas a três voltas (consoante a força necessária) na corda, o Pica inicia a morosa tarefa de a recolher, primeiramente até à poita. puxando-a para cima, seguindo-se  o "levantar" do aparelho. Até aparecer a primeira guia, decorre cerca de meia-hora. Processa-se, então, a verdadeira sensação da pesca. É O APANHAR DAS LINHAS COM O PEIXE...

            Apesar de parecer uma manobra simples, é, no entanto, uma das partes mais delicadas de toda a faina, pois o içar da retenida, deverá obedecer a um ritmo constante (sem qualquer movimento brusco, para não desferrar o peixe), assim como o retirá-lo da água e posteriormente desprendê-lo do anzol, colocando-o nas caixas  frigoríficas, separado por finas camadas de gelo, transportado até ali, no interior de sacas de linhaça. É conveniente esclarecer que cada gorazeira é constituída por uma linha de nylon, com cerca de 40 a 50 anzóis. Se a pescaria estiver a correr de acordo com as previsões, torna-se necessário "dar ao dedo" com a ajuda do "desaferrador"17 para que não haja tempos mortos e o peixe fique dentro de água, conduzindo à sua libertação do anzol.

            As gorazeiras depois de limpas e libertas dos peixes, são retiradas das guias por dissolução de um nó especial que as solta rapidamente apesar de manter a segurança da união, durante a pesca, e colocadas nas panas que as acondicionarão no percurso de regresso. Recolhido o último peixe, acelera-se novamente o motor, proporcionando ao cabeço um maior movimento de rotação e logicamente um aumento de velocidade na recolha do restante cordame. Esta operação é acompanhada e facilitada pela deslocação da lancha no sentido em que se puxa, aliviando, assim, a resistência oferecida pela água.

            Já com tudo a bordo, cada um ocupa o lugar que lhe pareça mais cómodo, enquanto o Romeu e o Fernando assumem novamente as suas posições, respectivamente ao leme e na amurada oposta, junto à cabine. Por razões exclusivamente lúdicas opto por sentar-me na ré, onde vou usufruindo todo o prazer dos salpicos da "maresia", que apesar da "roupa de água" conseguem infiltrar-se até ao interior. Como é um dia de Verão e são já cerca das 13H30 ou 14H00, o Sol está alto e a frescura da água mantêm-nos os sentidos totalmente despertos, permitindo observar a vista deslumbrante da aproximação à Ilha.

            Pelas 15H30, entramos na baía, onde o Romeu pilota a lancha para a acostagem, permitindo que todos nós saltemos para terra e façamos os preparativos para "varar"18 a "Sandra Andreia". Assim, como já se encontram muitos outros pescadores no porto, um deles assume a posição no cabeço que irá içar a lancha, enquanto outros e nós próprios, nos preparamos para "amparar" a embarcação durante a sua subida no varadouro.

            Ocupado o seu local de estacionamento, são colocadas as "escoras"19 e retirada a jaja, para escoamento da água que inevitavelmente apura no fundo. É, então, chegada a hora em que o peixe é transposto para as panas e colocado na balança da lota, onde o nosso amigo Gaspar, funcionário da Lotaçor, procede à sua pesagem, emissão de talões para cobrança de imposto e posteriormente submetido à licitação, para venda aos "nabiças"20 que já ali se aglomeram e aguardam. Tudo isto é precedido da retirada da parte considerada para a "caldeirada", definição que se dá a todo o pescado que se destina a consumo próprio e que não é sujeito qualquer tipo de penalização.

            Para finalizar e depois da lavagem da embarcação com água doce, este grupo sequioso dirige-se ao restaurante do Porto, também propriedade do Fernando, onde "molha" a garganta com uma cervejinha fresquinha, antes de regressar a casa para o merecido almoço e subsequente descanso.

            Foi com muita nostalgia que recordei uma destas pescarias, esclarecendo, ainda, que esta lancha "Sandra Andreia" foi vendida a um outro pescador da zona de Angra do Heroísmo, que a reconstruiu, ampliando-a. Actualmente pesca mais nas águas do Sul da Ilha Terceira, tendo o meu amigo Fernando feito a sua substituição por um "navio", ("Naviga 34"), já com todos os quesitos modernos necessários para a faina e que, dada a sua dimensão e calado, não lhe é permitido varar no Porto dos Biscoitos, pelo que tem de recorrer à Praia da Vitória.

            Porém, ficarão eternamente as saudades daqueles tempos...

Para ver a reportagem fotográfica mais completa e em sequência, prima AQUI

Terminologia:

1 - GORAZEIRAS: Fios de naylon (linha de pesca), onde são presos cerca de 30 a 40 anzóis, espaçados entre si. (Termo que tem origem no peixe goraz/es, embora também seja utilizada para a captura de outras espécies)

2 - VARADOURO: Cais inclinado onde ficam dispostos obliquamente os barcos, sendo a inclinação necessária para fazer deslizá-los até à água.

3 - CAMPANHA: Grupo que constitui a tripulação.

4 - ROUPA DE ÁGUA: O necessário impermeável.

5 - JAJA: Rolha de cortiça ou madeira, que é envolta num pequeno pedaço de pano e introduzida no orifício existente no fundo do barco, junto à quilha, para proporcionar a saída das águas que se venham a infiltrar, ou resultantes da lavagem da embarcação. O pano tem como objectivo não só ajudar a vedar melhor, mas essencialmente permitir que fique uma reduzida porção que permita puxá-lo e sacar a jaja. Também não pode ficar uma margem muito grande, para não haver o risco dos peixes porcos eventualmente ao procurarem roê-la, libertarem-na e ... imaginam-se as consequências. 

6 - ARRIAR: Fazer descer a lancha até à água.

7 - CABEÇO: Rolo metálico de grandes dimensões, movido por corrente eléctrica, ao qual se enrola um cabo de grande espessura e comprimento, que serve para auxiliar a subida das embarcações. Esta peça fica situada dentro de um compartimento construído para o efeito, no cimo do varadouro.

8 - FAZER MADEIRA: colocar espaçadamente pedaços de madeira previamente ensebados, onde assenta a quilha da lancha, de forma a permitir o deslizamento da embarcação, sem danificar nenhuma das suas peças. Estes "paus" são colocados alinhados, em distancias de cerca de metro e meio a dois metros, entre si, conforme o comprimento da lancha.

9 - MARCAS: Pontos de referência, tais como cimos de elevações que se conseguem observar e que por triangulação permitem a orientação precisa do observador.

10 - CABECEIRA: Porção de corda que une as bandeirolas, bóias e poitas à retenida.

11 - POITA: Grande pedra de basalto (rocha de origem magmática, bastante pesada), com rebordos irregulares de modo a permitir que se prenda convenientemente uma corda e que irá actuar como âncora.

12 - BANDEIROLA: Pedaço de pano colorido berrante, preso na extremidade de uma cana ou pau comprido e leve, tendo na outra extremidade um pedaço de esferovite ou outro material que permita flutuar e um pedaço de chumbo ou cimento que mantenha a cana na vertical.

13 - RETENIDA: Corda em naylon, com um comprimento de cerca de 5.000 metros, ou mais, onde são presas as guias, que estarão espaçadas entre si aproximadamente 40 a 50 metros.

14 - GUIA: Porção de corda bastante mais fino que a retenida, à qual é presa a gorazeira com os anzóis.

15 - GRAVETA: Objecto constituído por um cabo de madeira ou de um metal leve, mas resistente, na ponta do qual se encontra um gancho, tipo anzol grande sem barbela, utilizado para cravar nos peixes de grande dimensões e ajudar a puxá-los para bordo, ou para agarrar qualquer outro material que flutue e seja necessário apanhar.

16 - CABEÇO NA LANCHA: é uma peça semelhante à descrita, mas de dimensões muito inferiores, que é ligada ao veio do motor por uma correia que lhe transmite o movimento de rotação.

17 - DESAFERRADOR: Objecto constituído por um cabo, onde é encaixado um pedaço de verga grossa que termina com a forma de um U, na outra extremidade. O U acompanha a linha até ao interior da boca do peixe, o mais próximo possível do anzol, e com um movimento brusco de rotação do peixe, o anzol é libertado.

18 - VARAR: Retirar a embarcação da água.

19 - ESCORAS: Construções em madeira, que formam uma espécie de cunha e que colocadas nos lados da lancha, amparam e seguram-na.

20 - NABIÇAS: Pessoas que actuam como intermediários na compra do peixe. São devidamente licenciados pelo estado, andando de lota em lota, a adquirir o peixe licitado, que depois é encaminhado para as firmas respectivas ou, nalguns casos, vendidos directamente ao consumidor.